PREFÁCIO
Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.
Liev Tolstói
Nomear é conferir identidade. Assim, a revista batizada Intramuros nasce no esteio de ninguém menos que Tolstói, a quem sou grata pela colaboração. O termo, formado pela lexicalização do sintagma preposicional latino intra muros – dentro dos muros – faz referência aos espaços entre paredes mas, aqui, em acréscimo, remete ao recôndito de alguém que reflete sobre si mesmo.
Poder-se-ia pensar que o termo determina algo fechado, estanque, incapaz de expandir-se. No entanto, a revista Intramuros surge como a primeira oportunidade de criação de um lócus específico, onde docentes e discentes podem debruçar-se sobre o campo de Design de Interiores, inteiramente entregues ao seu repertório e a sua ótica particular – focada no usuário, que habita um dado território e usa esse espaço de acordo com uma dada função particularizada a sua singularidade – pessoal, cultural e ambiental.
A partir de agora, as variadas produções textuais elaboradas intramuros nas diferentes instituições de ensino podem ser compartilhadas dentro dos muros da revista que, por sua vez, será disponibilizada virtualmente extramuros.
Nos anos 1960, quando o surgimento dos primeiros cursos de Interiores do país foi orquestrado a partir da visão aberta e livre de preconceitos de arquitetos-docentes que reconheciam a especificidade do campo e a pertinência deste profissional interiorista como membro legítimo da equipe multidisciplinar orientada ao habitat humano, sua contribuição apoiou-se na própria prática enquanto arquitetos, pedindo emprestado à área de sua formação os princípios de composição e conceituação do projeto, adaptando-os aos interiores.
Pode-se por isso dizer que o design de interiores, em seu nascedouro e no seu desenvolvimento institucional, valeu-se da arquitetura, disciplina milenar que desde Vitruvius já falava em solidez, utilidade e beleza, princípios que hoje se relacionam aos fundamentos e às funções do design. A interseção entre interiores, design e arquitetura, seja nos campos teórico ou prático, existe – e não acredito que seja eliminada algum dia.
No entanto, obras de conteúdo específico sobre os espaços interiores demoraram muito a aparecer no nosso mercado editorial. Textos ligados à decoração respaldados nas artes decorativas podiam ser encontrados, mas aqueles que incluíam o design de interiores como um segmento particular que demandava uma metodologia própria e um pensamento ligado ao design são ainda hoje pouco conhecidos, em sua grande parte traduções, e podemos dizer até raros, principalmente os nascidos de nossa língua materna.
A ideia de publicação de uma revista digital – um Anuário Acadêmico da Associação Brasileira de Designers de Interiores nasceu da constatação de dois fatos: o primeiro diz respeito, portanto, à carência de publicações textuais específicas do segmento de Design de Interiores, que hoje se restringe mais a revistas especializadas onde nem sempre o conteúdo textual é portador de reflexões; o segundo fato se pauta na ausência de um veículo apto a publicar a grande produção de textos elaborada dentro das instituições de ensino – tanto por docentes quanto por discentes – que não consegue ser compartilhada país afora.
Diante dessa lacuna que certamente prejudica a coesão e o autoconhecimento entre nós, profissionais, docentes e alunos que se dedicam com empenho e seriedade a construir e consolidar o segmento de Interiores, apresento, com grande satisfação, o número 1 deste anuário acadêmico que, quase como versão piloto, iniciante na experiência e know how, é para nós motivo de orgulho.
Este sentimento foi ratificado pelo fato de poder contar com uma equipe de alto nível na composição do Conselho Editorial – docentes atuantes em cursos de Design de Interiores, que se disponibilizaram a avaliar os artigos recebidos, em trabalho voluntário e, provavelmente, abrindo mão de fins de semana de descanso. Imagino isso porque, docentes se habituam desde sempre ao trabalho extraclasse, além dos períodos regulares diuturnos, o que evidencia a generosidade da categoria sempre aberta a contribuir para a divulgação do ensino e melhoria do conteúdo nos cursos de interiores. A esses professores o meu profundo agradecimento.
Na elaboração da revista foram estabelecidos eixos temáticos que, como incentivo ao nosso público pesquisador, pudessem dinamizar a revista com diferentes matérias e olhares, provocando reflexão e incitando edições futuras: História, Teoria e Crítica do Design de Interiores; Metodologias do Design de Interiores; Design de Interiores e educação; Design de Interiores e processos sociais; Design de Interiores e tecnologia; Práticas do Design de Interiores.
Os textos recebidos evidenciam número de 40% versando sobre as práticas em Design de Interiores, percentual que, somando-se a 13,3% que tratou de metodologias, resulta, portanto, em que mais de 50% dos textos ligavam-se especificamente ao modo de fazer. Uma boa surpresa foi de que um número significativo de textos – 20%, tratou das questões de processos sociais, foco que favorece a categoria, ao valorar o conteúdo social da atuação profissional. A educação abarcou pouco mais de 13% dos trabalhos e a tecnologia quase 7% deles. Assuntos históricos não se fizeram presentes em nenhum dos textos recebidos. Infelizmente, muitos textos se desclassificaram por falta de cumprimento ao Edital. Credito à falta de hábito este fato. Haveremos de vencer essa dificuldade.
Embora a amostra não seja muito grande, talvez se possa apontar e inferir o motivo da ênfase dos estudiosos nas questões ligadas à práxis do projeto. Tal fato se dá a partir da certeza de que o conhecimento adquirido através da prática ao longo dos anos de estudo evidencia o objetivo das escolas – que deve ser o fomento ao espírito crítico do alunado que lhe fornece um instrumento original que não se encontra na literatura. Esta, digamos, expertise, nasce do estudo de casos desenvolvidos no seio da própria instituição, a partir de uma análise dos projetos, seus conceitos e seus valores, quando se pode, a partir dos dados do briefing, discutir profissionalmente as configurações e os partidos adotados pelos discentes em seu desenvolvimento. Desnecessário dizer que críticas e sugestões que possam corroborar para o próximo Edital serão sempre bem vindas.
Vale ainda ressaltar que, se há quem atribua à teoria um valor intelectual sem maiores consequências, há quem reduza a prática à repetição de padrões. Na minha ótica, não existe separação, mas complementariedade entre ambas. Teóricos não são menos afetos à concepção de espaços. A teoria não precede a prática e nem se constitui como um manual que a sustenta: é dinâmica, nela incide e se pauta, nela se confirma ou se reconstrói. Objetiva ordenar e racionalizar a complexidade do projeto, tentando compreender os fatos que lhe sejam essenciais. Seu valor está justamente na ampliação do senso crítico que permite uma atuação projetual mais acurada. A prática, por sua vez, não pode ser empreendida se não é capaz de refletir sobre o campo teórico que lhe serve de abrigo. Estejamos, portanto, pesquisadores e projetistas, unidos nessa empreitada.
Apresento-lhes, com alegria, a nossa revista INTRAMUROS. Espero que, com ela, comecemos finalmente a pintar a nossa aldeia. Mais um passo pela consolidação da profissão.
Boa leitura!
Nora Geoffroy
Presidente do Conselho Acadêmico
ABD – Associação Brasileira de Designers de Interiores